Lila


vida é arte | obras de artistas da comunidade


Edição 14
arte nossa de cada dia

Editorial

Vida é arte. Esse foi desde o início o slogan poético da Lila, essa coleção de palavras e imagens que você tem diante dos olhos.

Vida é arte, e arte é uma brincadeira séria, e sagrada. O que mais há para se fazer no mundo, além de criar? Criamos a cada passo, cada pensamento.

Antes da poesia de versos e estrofes, existe a poesia dos momentos que se sucedem, entre altos e baixos, contando uma história – nossa história, que é única no mundo, inigualável.

Reverencie cada momento, respeite cada sentimento e sensação, sinta a vida com atenção e com o coração aberto, com coragem, e assim cada respiração se revelará como a própria criação e recriação constante da Vida, se realizando através de você.

ver a vida com olhos coloridos

Atenção

“Não me leia sem Atenção”,
me disse o poema.

Eu o respeitei.
Ele me presenteou
com um momento eterno.

“Não me sinta sem Atenção”
me disse a vida.

Eu a respeitei.
Ela me presenteou
com a eternidade em cada momento.

~ Bruno Andante (Vishuddhi) | @brunoandante

Parto

É difícil prever onde e quando a poesia vai nascer;
a gestação poética é invisível,
e quem carregue a benção maldição de ser poeta
tem de estar sempre pronto
a dar à luz.

Pode ser debaixo da terra,
o que por si é simbólico e profundo,
quase um ritual xamânico.
Mas o que eu lembro é daqueles instantes
em que os versos irrompem intempestivos
no meio de um trem
em algum túnel do metrô;

talvez tantas vidas juntas,
tão juntas e tão distantes,
façam tal pressão sobre o coração
que eu preciso explodir pra dentro,
como uma primavera de inspiração
rebelde
florescendo sem me pedir permissão
no seio sufocante do inverno urbano;

talvez em lugares assim,
móveis, transitórios, em geral infelizes,
qualquer poeta presente
se torna o veículo da dor
e talvez do amor;

se torna válvula de escape,
espécie rara de mártir involuntário
eleito silenciosamente pra dar voz
aos sonhos encarcerados,
ao silêncio ensurdecedor,
à sensibilidade anestesiada do mundo.

Sagrada poesia, que expia os pecados
que cometemos diariamente
ao negarmos a beleza
– e há beleza até em nossa tristeza,
mesmo na aspereza
dessa vida obtusamente concreta.

~ Bruno Andante (Vishuddhi) | @brunoandante

Edição 13
a dor é despertador

Editorial

Até às dores nos apegamos. Os problemas, dramas e dilemas se tornam tijolos na construção de uma identidade, uma ideia de quem somos.

Sem nos culparmos (e sofrermos ainda mais) por isso, podemos olhar isso com um olhar de amor. Ver esse mecanismo é o primeiro passo para se libertar dele.

A tristeza vem à vezes, é tão natural como a chuva. Mas às vezes mesmo em dias de sol continuamos vivendo os dias de chuva, em nossas mentes.

Acolha a dor, como uma mãe acolhe a criança chorando porque um boneco de pano se machucou. Mas isso não significa acreditar na história que a criança conta, né?

Além dos altos e baixos, do arco-íris e dos tons cinzas, você é essa Luz da consciência, que contempla serenamente as alegrias e tristezas encenadas no palco da vida.

não petrifique a chuva

O Peso do Passado

Nas tardes da grande cidade, entre tantos prédios erguidos e tantas vidas caídas, vejo passando toda essa gente. Uma gente desorientada, um tanto desencantada, andando apressada pelas calçadas. Segue conversando com as suas feridas, as suas dores todas, tão queridas.

Bem guardadas, lá no fundo da memória afiada, carregam todas as pedradas, as rasteiras da vida, as ciladas bem armadas, as verdades mais amargas. Carregam-nas todas, como souvenirs de antigas viagens, como peças de antiquário, enfeites para fundos de armário. São coisas pesadas, essas coisas todas! Coisas passadas, como vidas mortas e empalhadas, presas na parede, dependuradas, sempre ali, bem à vista, para serem contempladas.

Vejo passar essa gente toda. Uma gente de olhar distante e de sorriso ausente, um sorriso que é ausente até quando está aberto. É gente como a gente, mas um tanto quanto diferente, claro, porque só cada um, com seu cada qual, sabe o que realmente sente. E olha que muita dessa gente é gente elegante, bem distinta, dessa que se pinta com caras tintas, e apronta assim as suas caras bem feitas, feitas para agradar, perfeitas para aparecer. Sim, não adianta: essa gente também sente angústia. E olha que sente até mais que a dona Augusta, que limpa o chão do teatro, com a vassoura na mão e leveza no rosto, que sente no coração o quanto é que custa criar os filhos com educação e sem ver nenhum dar desgosto…

Ah, essa gente que tem tanto e não deixa de pranto! Gente abastada, que mora em casas grandes e cercadas de grades, casas assombradas pelas lembranças das esperanças, mas são casas muito bem decoradas, isso não pode ser negado. Mas aí, decerto, é um desencanto, porque a gente luta tanto para ter tudo que queria, e de repente tem tudo que queria, mas já não é mais isso que gostaria!

E o que é que faria essa gente toda ter alegria? Pobre, rico, artista, cientista, famoso ou fantasma, inteligente, crente, o fato é que toda essa gente fica triste, cedo ou tarde, sozinha consigo mesma ou sozinha no meio da multidão, com ou sem razão, às vezes dizendo que está tudo bem mas sentindo no peito que não está, não. E qual a solução, então?

Pois o doutor disse que essa gente está deprimida, e por isso ele vai receitar um comprimido, ou então dois ou três, dependendo do caso. Mas eu quis uma segunda opinião, e perguntei para o seu Sebastião, que é muito são, e o velho Tião disse que a gente em geral não precisa de comprimido, e nem de comprar nada… Porque na verdade, a bem da verdade, a gente precisa é de vida, de boa comida e boa amizade, precisa ter liberdade; e sobretudo, meus queridos, a vida da gente tem que ter sentido.

~ Bruno Andante (Vishuddhi) | @brunoandante

Mensagem do Amor para Você

Em teu coração vive um mestre,
que vive também em mim;
eu o escuto nos meus silêncios,
e ele me pede para te dizer
em voz alta, voz de poesia:

“Eu queria dizer que vai estar tudo bem.
Mas não quero te oferecer o futuro
como presente para alegrar teu presente.

Eu queria dizer que já está tudo bem,
que por trás do barulho há o silêncio
e que entre as ondas que vem e vão
você é o mar, tão grande e profundo.

Mas mesmo que tua mente talvez entenda,
algo na tua visão anseia, ainda,
por iluminar a vida
a partir de outro ponto de vista;
teu coração está fascinado com a dor,
e não tenho direito de estragar teu prazer.

Eu queria te aconselhar a confiar em você,
mas teus olhos buscariam ainda
pelo reflexo trêmulo no espelho,
e isso, minha bela criança,
é só uma fantasia.
Bem no fundo você já sabe
que essa miragem não é confiável,
que um personagem
é só um personagem.

Mas há tempo para tudo;
para esquecer e para lembrar,
para não ver e para ver,
para vestir e tirar as máscaras.

Meu amor é tão só estar aqui.
Mais simples do que ter que falar,
mais gentil que querer ensinar.
Eu me limito a te convidar
a olhar além,
e não busco te convencer.

O sonho é todo teu,
fruto de escolhas sem escolha;
e despertar é o nome
do sonho mais belo da Vida que te vive:
destino sem pressa,
inevitável,
caminho do infinito
já sempre presente.

Sou um convite sempre aberto.
Quando quiser conversar,
me encontre bem aqui e agora
na mais pequenina casa do tempo,
em qualquer simples momento.

E lembra que falo a língua da vida,
e que você pode me ouvir
com apenas um pouco de silêncio.”

~ Bruno Andante (Vishuddhi) | @brunoandante

Edição 12
tempo ao tempo

Editorial

Dê tempo ao tempo. As areias da ampulheta se esvaem, mas a ampulheta é uma ilha em meio a uma imensidão de areia dourada: uma miragem na qual a vida brinca de ter fim, por um momento, na perfeita praia da eternidade.

Agora é bom o bastante. Um lar doce lar, em meio às intempéries do tempo. Além do jogo de luz e sombras, além dos altos e baixos, das idas e vindas. Espaço de pura consciência. Sua essência.

Ora é sol, ora é chuva. Ora dia, ora noite. O agora é céu. Sempre igual, imutável paraíso sempre presente, onde anjos crianças se divertem com a ideia de viver e morrer.

Se dê um tempo para sentir o Amor além do tempo. Para sentir Deus, no coração de cada momento.

instante

Crônicas do Rei Lógio
Parte I: Contra-Tempo

Às vezes não gosto de como o tempo
insiste a passar sem esperar por mim.

Quisera ser como as flores do jardim,
que sempre sabem o certo momento
de abrir ou fechar, nascer ou morrer.

Sonhara um dia tornar tão só a fluir,
como as águas de um rio que segue
num ritmo que só a natureza mede.

Mas a máquina conta outra história,
no fim das contas de um ca-lendário
que desencanta o canto das estações.

Enquanto marchamos, a lua dança:
desenha círculos, ensina em silêncio…

~ Bruno Andante (Vishuddhi) | @brunoandante

Tempo Bonito

E no fim tudo é como esse dia,
sentar na grama e olhar o céu
e falar sobre o tempo:
o tempo que passa muito rápido
a não ser talvez no teu abraço;
o tempo que parece não passar
e pesa levemente nostálgico;
o tempo e o vento
que despe as árvores
e leva as sementes
no mesmo movimento.

Viver é esse intervalo no jardim,
tempo de sentir o vento
e ver tudo isso que nele pousa,
e ver o pensamento
que mede o tempo
e que logo se esvai,
mais veloz que o vento,
mas que deixa o rastro da dança
em uma lembrança.

É tudo como um nada
colorido e vivo, que está e não existe,
um caminho trilhado que desaparece
porque já foi trilhado,
como um poente que virou nascente
porque a noite caiu e ergueu o sol, pontual,
depois do sono do dia.

E algo em tudo isso que a gente fala
ensina sobre a vida e a morte;
a gente sente, mas não entende bem,
e tudo bem
pois no fim das contas e dos contos
tudo é como esse dia:
sentar na grama e olhar o céu
e falar sobre o tempo.

Será que hoje chove?
Eu não sei, meu bem,
mas o tempo está bonito hoje.

~ Bruno Andante (Vishuddhi) | @brunoandante

Edição 11
portal do inverno

Editorial

Mais um inverno chega nas terras tupiniquins, trazendo consigo o convite à reflexão e à interiorização.

Foram muitas vezes os ventos mais frios que sopraram aos ouvidos dos poetas a mais delicada inspiração. O inverno guarda o portal para uma sabedoria preciosa.

Enquanto a natureza se recolhe e os dias cedem espaço à um pouco mais de noite, possamos nos recolher na sagrada caverna do coração, em nossos momentos de serena contemplação.

o azul é maior

A Queda e as Asas

Ao cair para o silêncio,
antes de se apagar de todo
e morrer e voltar a ser espaço,
primeiro o pensamento clareia.

Porque na queda perde excessos
que se desprendem e se dissipam,
como levados por um vento forte.

(O vento sopra não no abismo em si,
mas na queda de algo que pesa
e sofre o atrito contra o ar
que está perfeitamente quieto.)

E por isso se pensa menos e melhor,
em pensamentos mais simples
e na mesma medida mais precisos.

Percebo essa queda
como uma casa que se desmorona
de fora para dentro,
desvelando aos poucos o esqueleto
e abrindo espaços
onde as verdades poderiam morar.

Porque a verdade
precisa menos de superfícies,
de paredes, pinturas e portas,
e mais de vazios,
férteis ausências,
e decorar demasiado nossa razão
é ato de confundir lixo com luxo.

Por isso ao cair para o silêncio
o pensamento primeiro se desveste
de um tanto de roupas que lhe pesam.

Como um anjo de mármore que se esfarela
e quanto mais de desfaz, mais anjo se faz,
libertando da solidez do mármore
a luz de que são feitas as asas.

~ Bruno Andante (Vishuddhi) | @brunoandante

Espelho do Silêncio

Mirei no futuro,
acertei um sonho:
em cheio,
bem no meio
do seu âmago vazio.

Morei nele,
bem abrigado
por muros de fantasia:
um castelo
de mil espelhos
onde só vi miragens.

Mirei na verdade.
E acertei uma solidão
de faces e faltas infinitas…

Me despedi de lá.
Me despi daquelas luzes
trêmulas dos sorrisos
imaginários.

Mirei-me no presente.
Atirei-me no seu silêncio,
vi-me reflexo nos seus olhos:
acertei-me.

Aceitei-me.
E me cerquei
da simples vida
por todos os lados.

Morarei aqui mesmo.
Em um eterno agora
sem nenhum muro
e cheio de espaço.

~ Bruno Andante (Vishuddhi) | @brunoandante

Edição 10
simples idade

Editorial

Simplicidade que nutre e cura. Um importante ato de autocuidado é soltar o peso que andamos por aí carregando, na mente, na memória.

Podar os excessos, deixar ir, simplificar. Caminhar mais leve, mais livre, um passo de cada vez.

A arte tem o sagrado papel de nos arrancar por um momento do tempo imaginário e nos ancorar no presente, único tempo real. Ler com atenção um poema é como degustar um bom alimento: bon apetit!

mais leve, mais livre

Para Navegar através do Tempo

Para navegar através do tempo
sem se perder nas suas correntes
precisamos habitar o presente.

Faz da tua respiração uma âncora,
e a cada sopro da vida que te vive
descansa, como o ar que habita o vento.

Sem desperdício de esforço,
sem cansaço,
só flutua leve nesse balanço
de ser sendo.

Ser é verbo:
não se substantive
em demasia.
Porque o mistério
é a tua substância.

Sempre o mesmo
e sempre mudando:
errância sem erro,
pura presença,
plena existência,
perfeita dança.

Para voar através do tempo
sem se perder nos seus ventos
basta flutuar ao sabor do presente;
porque cada simples momento
é todo o caminho,
é teu guia
e teu melhor mapa.

Ser livre é não estar longe
da bonita verdade
de que você já está Aqui:
no infinito espaço
que sustenta cada passo.

E descansar não é parar:
é pousar no vôo,
repousar
no cerne do movimento.

E assim tudo se realiza.
Em um fazer sem fazer
floresce a ação mais potente e precisa.

Sem os excessos
não há desperdício;
sem desperdício
já não há escassez.

Leveza
é força,
menos
é mais.

O simples
é o solo fértil
do complexo,
do completo:
do diverso e ainda uno
ser e vir a ser.

~ Bruno Andante | @brunoandante

Útero

Que longo caminho andei
procurando
pelo lugar onde eu sou eu.
E a sombra da memória
de todos os lugares que foram lares
pesou em meu coração.

Tantas vezes busquei futuros passados,
à caça do presente de estar presente
e poder me sentir em casa, finalmente.
A gente segue até que isso cansa.
E cansa mesmo, cedo ou tarde,
pois não se chega a lugar nenhum.

É só quando o coração, já exausto,
se entrega e se abre,
que enfim se vê:
só o Agora é abrigo,
só o Amor é refúgio.

E assim todo lugar é meu lar.
A vida é a minha mãe,
cada silêncio atento é útero:
o solo fértil onde tudo nasce
e se desfaz e renasce,
onde cada sonho é semente
e a morte é alimento.

Ser caminho e movimento,
e estar ainda enraizado
em cada simples momento:
estar em casa
já não se distingue
de abrir asas,
pousar
já não se distingue
de voar.

~ Bruno Andante | @brunoandante

Edição 9
raízes e asas

Editorial

Natureza nos sustenta em corpo e alma: nos alimenta com seus frutos e seus ensinamentos preciosos.

A espiritualidade está em cada gota d’água da Vida que nos vive. Nossos pés tocam a terra, enquanto o sopro de nossas preces alcançam o céu.

Aqui você encontra um conto sobre a devoção que se realiza (pode se realizar) a cada momento, com os olhos e ouvidos, com os sentidos bem abertos, com o coração em comunhão com a alma do mundo.

terra céu

O Caminho mais Curto

“Qual o caminho mais curto para Deus?”, perguntou o aprendiz, ansioso por sentir, na intimidade do coração, o que os antigos chamaram Yoga: a experiência de comunhão com o Criador, o Ser de todos os seres.

“O caminho é aqui, ora”, respondeu a mestra. “Deus está em tudo. É mais íntimo que um pensamento. Está mais perto que sua pele. Para que um caminho, então?” Ele olhou intrigado. Sentia as palavras ressoando, mas queria mais.

“Sim, mas… como sentir isso, e não só pensar?”, arriscou. Ela o encarou com um olhar bondoso, meio travesso, emoldurado por um sereno sorriso. Um silêncio permeou o ar, até que ela contiuou. “Se quer o caminho mais curto de você até você, entenda o sentido mais profundo da Devoção.” Ele abaixou a cabeça, pensativo.

“Não pense. Observe, com os olhos do coração. Vê a devoção silenciosa que há entre as abelhas e as flores? A dança amorosa entre o céu e a terra? A reverência da árvore crescendo em busca da luz? A alegria da mãe alimentando pela primeira vez o filho?” Uma brisa suave soprava, enquanto a mulher falava, em tom melodioso. Pássaros cantavam enfeitando a tarde, o sol brincava em luzes dançantes nas águas do rio. Ela olhou ao redor, ele seguiu o exemplo.

“Se tudo isso é Deus se expressando, admirar-se com a obra de arte que é a vida é o primeiro ato de devoção. Abrir bem os sentidos. Abrir o coração. Deixe as árvores te ensinarem a se entregar, as flores e abelhas te lembrarem que somos um. Deixe a inocência das crianças te inspirarem a se deslumbrar com a vida, a cada dia.” Ele ouvia e sentia a beleza crescendo. Saboreava cada sensação.

“É o amor, então… amar em cada olhar. Olhar através do amor. É o que você chama de Bhakti, não é?”, falou o jovem, após um instante.

“É o primeiro passo, ao menos. Mas pode ser o último. O único: se tudo que se faz e fala é consagrado ao amor, se cada movimento é um ato de devoção, se você oferece cada riso e choro à Deus, aí está seu caminho mais curto. E quando menos espere, vai perceber que já chegou. Porque nunca partiu, pra começar.” Ele sorriu, e agradeceu com um olhar de amor.

~ Bruno Andante | @brunoandante

Edição 8
outro outono

Editorial

Quando as folhas de uma árvore precisam cair, ela não resiste: se entrega. Precisamos aprender com as árvores. Sem deixar ir, como ter espaço para a eterna novidade?

Meditar é em grande parte a arte de ser outono. Silenciar, e deixar cair as velhas folhas. Dissolver as resistências, e se entregar. Simples, e tão profundo.

Aqui você encontra dois poemas outonais, para te inspirar nessa arte silenciosa.

sementes

Entrega

Há um refúgio que não se alcança na fuga;
ou uma fuga que demanda coragem.
Uma saída que é para dentro,
vitória que é rendição.

Há uma força que já não é resistência;
ou uma resistência que é entrega,
certeza que mora na dúvida.

Ser inteiro a princípio parece despedaçar-se,
e viver de verdade depende de saber morrer.

Há uma guerra que, em essência, é só dança.

~ Bruno Andante | @brunoandante

perder folhas, ganhar flores

Vento de Outono

Há um vento suave que sopra às vezes…
Você não vai ouvir
se o teu pensamento estiver muito alto.

É um vento que te inspira e convida
a parar ao menos por um momento
para voar sem sair do lugar;
que te lembra de sentir
mais que só pensar,
e de Ser mais que fazer.

Mais leve que o ar, sutil, invisível,
mas pode te desmoronar por inteiro
e deixar só o amor, no teu lugar.

Ele vem de mansinho,
em casa ou no meio da rua,
como um anjo travesso que passa
sussurrando baixinho
o segredo mais perfeito do mundo
– e não espera resposta, não tem pressa
nem anseia por concordância,
e se vai, tão logo veio.

É um vento que acalenta,
ao menos quando não assusta.
Acaricia uma parte de ti
que você nem lembrava que existia
(que ficou escondida, no coração,
soterrada debaixo de muito peso
de mil ideias e identidades,
de lembranças e planos,
imagens e miragens
que colonizaram o espaço
selvagem e simples
onde o silêncio do espírito
se fazia ouvir
a cantar).

É um vento suave que sopra às vezes,
que serena a tempestade
e semeia calmaria.
Se você o escutar soprar,
abra as janelas da prisão confortável
que você chamou de lar.
Pare tudo o que estiver fazendo
e solte tudo o que estiver pensando.
Apenas escute e sinta
com sua mais plena e pura atenção.

Sem nenhum lugar para ir
a não ser aqui,
um aqui que está em todo lugar.
Nada a fazer, a não ser simplesmente ser
sem esforço e espontaneamente,
como a primavera no tempo de florescer.
Sem ninguém com quem estar
a não ser consigo,
e com tudo,
com todos
– com Deus?

É um vento que sopra
sempre.
E que você pode sentir,
às vezes.

Deixe para isso apenas um espaço
de silêncio,
em meio a tudo o que você chama
de você.

~ Bruno Andante | @brunoandante

basta um vento…

Edição 7
celebra
a ação

Editorial

A cada passo, um motivo para celebrar. A cada celebração uma oração, uma meditação. A vida espiritual é lúdica, também. Sagrada brincadeira de ser e vir a ser.

Essa existência celebrativa acolhe amorosamente todas as estações do coração. Não podemos viver sempre com um sorriso pendurado no rosto. Mas até a tristeza tem sua beleza. Existem pérolas escondidas no nosso mar de emoções.

Aqui você encontra algumas pérolas de experiências simples e singelas, traduzidas em palavras. Prosa e poesia para enfeitar seu dia, ou sua noite. Desfrute!

o céu sorriu

A Arte da Celebração

A noite cai, devagar e sem pesar, e estende sobre nossa terra a sua capa estrelada. Vivos e joviais, de sentidos atentos e sentimentos singelos, nos encontramos mais uma vez, e celebramos a vida colhendo e compartilhando seus frutos mais doces.

Como leves borboletas, sorvemos o néctar de sonhos-flores, materializados em sons e cores, toques, perfumes e sabores. Criamos em uníssono, na harmonia de múltiplas melodias, as mais raras e belas músicas, cantando e tocando nossas cordas, flautas e tambores.

Dançamos no ritmo do coração, suaves ou impetuosos, sozinhos ou entrelaçados, serenos ou sensuais, fluindo a passos e gestos livres, seguindo a própria dança dos elementos, recriando os ciclos da grande mãe natureza.

O salão, à meia luz das chamas das velas, perfumado de frescos aromas da terra, se enche de uma energia que purifica, cura, fortalece e eleva às alturas. Nossa arte sem nome nos leva até lá, onde as nuvens de ignorância, carregadas de velhos medos e desejos insatisfeitos, se dispersam ante um vento de êxtase eternamente renovado…

Esta é a arte da celebração, tão antiga e tão esquecida nestes dias cinzentos. A arte da comunhão e da livre expressão da existência em sua mais pura essência. É nossa meditação e nossa oração, uma chave secreta para abrir as portas da percepção. Uma transcendência através da imanência, um delicioso paradoxo: a um só tempo enraizar-se na terra e abrir asas e voar aos céus…

No casamento entre espírito e matéria, eis que os corações, incandescentes e luminosos, transbordam de paz, alegria e amor. Eis que a própria luz única, em vestes de criança, brincando de ser, emana ao mundo as suas bênçãos, e vai transmutando tudo em sublime, completo, perfeito contentamento…

~ Bruno Andante | @brunoandante

celebrar é uma arte

Doce Melancolia

A alegria me chama para dançar.
A tristeza só quer estar por perto.
Ler um livro, escrever um poema.
Me abraçar um pouco, aqui e ali.
Acender a lareira, preparar um chá,
escutar músicas suaves, suspirar.
Às vezes até sorrir.

~ Bruno Andante | @brunoandante

arco-íris: sol E chuva (ambos)

Edição 6
medita
a ação

Editorial

Meditar é preciso, navegar não é preciso. Mas meditar é impreciso, também.

Não é só sentar e fechar os olhos, é viver consciente momento a momento, com os sentidos bem abertos, com o coração bem aberto. A meditação que se aprofunda no silêncio, e se amplia na dança do dia a dia.

Ler poesia com o olhar fresco de quem não está procurando nada além do deleite do momento em si: eis o convite para uma boa meditação artística, que você pode praticar bem aqui, bem agora. Divirta-se! 😉

precisa de espaço

Meditação

Não é tanto sobre brincar de estátua.
Não é só quando você para
e fecha os olhos.
E não é consumir o silêncio
como quem engole outro anestésico.

É quando a gente caminha pela verdade,
pela estrada viva de cada instante
e o olhar pousa
com carinho em cada coisa,
e nada é óbvio.

É quando a gente cansa de fugir do Aqui,
e desiste dessa maldita luta
contra a inacreditável simplicidade
de sermos o que já somos.

É o pouso em pleno voo:
a vida segue a sua dança,
mas os ventos da mente descansam
e o pensamento repousa
em silêncio
ou em sussurros
ou um assobio sem esforço
no seio da sua própria falta do que fazer,
porque tudo já é completo
e mapas são lindamente desnecessários
quando o mundo está aqui,
todo no coração.

Não é sobre fugir do barulho dos dias,
é sentir o silêncio
que canta macio por trás do barulho.

Não é esquecer da vida
mergulhando na própria respiração,
é se lembrar de respirar plenamente
em cada sopro de vida.

E não é esconder a dor
longe do olhar:
é abraçar a dor
com um olhar de amor.

Meditar não é nada complicado:
é só ser tudo
sem ser nada,
tão simples quanto se pode ser.

~ Bruno Andante | @brunoandante

o caminho é cada passo

Transcendança

Meu caminho
é o Céu na Terra.
Meditar cantando,
voar alto plantando
beterrabas no quintal.

Pois já não me iludo
com meras abstrações,
quimeras das idealizações:
quero uma metafísica aplicada
com torradas, no café da manhã.

Quero uma transcendência
com cheiro de terra molhada.
Quero ser espírito de carne e osso,
desapegado com os dois pés no chão,
vivendo borboleta em um mundo casulo.

~ Bruno Andante | @brunoandante

borboleteando num mundo casulo

Edição 5
o tempo passará,
a vida passarinho

Editorial

Dezembro, fim de ano, festas, férias. Parece que o tempo é diferente. Quem não tem lembranças fortes do ano velho? Quem não tem esperanças para o ano novo?

Mas o calendário é lendário, é um tanto imaginário. À parte as retrospectivas e as expectativas, existe o eterno agora. Só existe o eterno agora, que sempre se renova. Paradoxo lindo, que só pode ser vivido, nunca compreendido intelectualmente.

O ontem é um pensamento, assim como o amanhã. É até importante considerar passado e futuro, claro. Mas qual a prioridade? Promessa por promessa, prometa estar mais presente, a cada passo. Feliz momento novo!

Toda hora é agora.

Isso Também Vai Passar

Quando tudo isso passar eu vou…
Quando tudo isso passar…
Quando tudo isso passar?
Quem disse que tudo isso vai passar?
É obvio que tudo isso vai passar
Tudo isso vai passar
Essa é a única certeza que temos
E quando eu digo tudo isso
Não me refiro a nada em específico
Me refiro a, literalmente, tudo isso
Então melhor compreender logo
Que quando tudo isso passar
É um tempo inexistente
Melhor compreender logo
Que tudo o que temos é o agora
E agora?

~ Mani Scorza | @reticenciasabsolutas

abra espaço no tempo

Tudo Novo de Novo

Tirar uma revolução do fundo do armário.

Tudo novo de novo.
É morrer e renascer,
nada será como era.

Aqui é preciso desafiar o óbvio,
que te olha de volta com o sorriso irônico
de quem já viu esse filme antes.

Mudar de casa,
mudar de casca,
mudar de cara.

Mas mudar a tendência de sabotar a mudança;
estar presente o bastante
a cada passo
para desvirtuar o vício
no passado.

Honrar a força desse repentino amor pela vida
e não dar tanto crédito ao medo quase secreto
de que seja só fogo de palha,
mais uma vez.

Honrar a força e a fragilidade
desse fogo que move mundos
mas precisa de cultivo atento,
pois pede por ser alimentado
com a lenha boa (e infinita)
da nossa mais fresca verdade.

Reconhecer o paradoxo
de se esforçar sem se forçar
além do limite preciso;
pois o excesso só te exaure
e os primeiros passos
nunca se tornam caminhos.

Se lançar por completo à aventura,
mas com a atenção e a intenção refinadas
pelas tantas tentativas anteriores,
e evitar assim aquelas armadilhas gêmeas
do medo da morte
e do medo da vida.

E claro:
saber desde o início
que a fonte é o destino
e o destino é a fonte.

Peregrinar sem se perder
em outra procura da cura,
que pendura o horizonte no futuro,
quando o lugar ideal que se almeja
é aqui.

Tudo novo de novo,
na superfície exuberante
da essência imutável.

Tudo novo de novo,
morrer e renascer,
e tudo será como É.

~ Bruno Andante | @brunoandante

não estacione em uma estação

Edição 4, novembro de 2021
vida é comUnidade

Editorial

Quem é você? Dizemos “eu sou”, mas não seria mais preciso dizer “eu somos”? O clichê espiritual de que somos um é perfeitamente verdadeiro.

Existimos em interdependência. Nos entrelaçamos como fios na teia da vida. Dançamos uma mesma dança, que é a existência única em seu exuberante disfarce de multicolorida pluralidade. Terra, água, ar, fogo, espaço, tempo, pedras, plantas, animais, você: a vida em si é uma comunidade, vida é com unidade.

Mais do que pensado e entendido intelectualmente, isso pode ser sentido. E esse sentir, que é saber o sabor, é o que se chama de despertar: perceber, com clareza e constância, a nossa comunhão com tudo e todos. Mas qual o caminho para esse despertar? Medita que facilita. E lembra que poesia pode ser uma bela meditação! 😉

A flor da vida, na geometria sagrada

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Isto de os corações crescerem como árvores,
nos faz querer pintar a Terra mais que as flores.
Qual sentido da vida é maior
do que partilhar os frutos de nossas artérias,
e ver as sementes germinarem
para além de nós?
É no compartilhar
que o ser humano se faz gigante:
Os olhos crescem
quando passam a enxergar outra vida.
Os ouvidos ampliam
quando sabem escutar.
O cérebro expande
ao compartilhar sabedoria.
 
E nunca falta terra e grão
para quem divide comida,
e nunca falta inspiração
para quem da arte compartilha.
Quem cuida hoje, amanhã será cuidado;
e uma andorinha só não faz verão
nem refloresta um planeta.
E quando a floresta invade
só há amor.
Pois é verde o coração das plantas,
e quem serão as plantas, se não nós?
Animais em cativeiro aprisionam a alma
E onde existirá liberdade
enquanto qualquer de um nós estiver preso?
 
As amoreiras e os curumins crescem
em cada foto de nossa única família,
os macacos são os mestres de toda a criançada.
E todas já sabem…
Sem os fungos e insetos nenhum humano existiria.
Toda pedra tem coração,
todo silêncio tem sua canção,
o céu é morada em um peito aberto de inocência.
Os olhos só veem aquilo que são
e a chama jamais apagará.
Basta deixar de querer ser só uma vela
para se reconhecer brasa em toda Vida.

~ Zero | @poemasparaoextase

se enraize no céu

FlorEstando

De tanto olhar a dor do mundo
e de mim mesmo nesse mundo,
meu olhar pesou e ficou nublado.

Eu não sabia bem ainda
que a água no ar
era feita de amor.

Das nuvens cairam tempestades
e então também chuvas serenas.

E da terra seca dos meus dias
de ácida cidade,
de pensar muito
pra não sentir tanto,
começaram a germinar plantas
que nem sei o nome
e que não tardaram a florescer.

Eu não sabia,
mas em mim nascia
uma floresta inteira.

A dor me deu força.
Entrou nas frestas da terra seca
e lhe matou uma sede ancestral,
tocou o coração das sementes
e as acordou do sono profundo.

Hoje a vida que me habita
alimenta a vida que habita outros,
conterrâneos de uma mesma vida.

Hoje o meu ar mais fresco
pode ser um sopro de alívio
para quem anda sufocando
nos descaminhos desse labirinto.

~ Bruno Andante | @brunoandante

a vida insiste

Edição 3, outubro de 2021
o presente da pura presença

Editorial

Estar plenamente presente é um presente. Alguns chamam de atenção plena, alguns chama simplesmente de presença. Consciência enraizada no aqui e agora. Esse momento é o único que existe, já percebeu?

Cada passo no caminho é todo o caminho. É a mente [que mente] que nos convence de que passado e futuro são mais importantes. Entre tantos pensamentos, pressionados pela pressa e a preocupação, nos esquecemos de olhar ao redor, de ouvir, de sentir.

Resgatar a atenção é uma micro-revolução. Nos liberta das amarras imaginárias do tempo psicológico. Quando aprendemos a vivenciar cada segundo por inteiro, podemos celebrar a vida por tempo indeterminado. Medita que facilita!

Como nutrir-se da Eternidade

A Flauta é parte da Floresta?

Toco a flauta
enquanto caminho pelas trilhas da floresta
e me sinto contente quando erro uma nota;
penso que assim os pássaros podem notar
que esse estranho não é tão afinado quanto eles,
que apesar do mistério das coisas humanas
não dominamos a soberana arte da simplicidade,
que somos como deuses
mas somos ainda loucos.

Encontro um abrigo
no templo de um instante sem tempo,
enquanto contemplo mais um lindo por do sol
brilhando majestoso entre as árvores,
visto por tão poucos:
espetáculo de prata e ouro, de azuis e violeta,
pintura viva que se renova a cada dia
sem esperar por olhos que a admirem.

Caminho e esqueço para onde caminho,
mas sem perder o rumo.
Caminho e esqueço onde estou
sem esquecer da floresta que me abraça,
caminho e esqueço quem sou
sem esquecer que eu sou olhos e ouvidos.
Sei que sinto,
sei que cada passo é o único,
sei que são belas essas roupas do infinito
que eu vejo na forma de morros e árvores,
de raios dourados
que entram por janelas das folhas
e pequenos seres alados que dançam neles,
como universos leves e breves
em uma nuvem de luz.

Sei que nada é só o que parece,
e que há mais vida debaixo de uma pedra
que em todos meus grandes pensamentos
sobre a vida.
Eu sei que não sou diferente
dos insetos que pairam no ar,
pois assim como eles eu me banho na luz
sem entender o mistério do sol,
sem entender esses incontáveis outros sóis
que pontuam a noite, distantes,
sem entender a imensidão
dessa ciranda da existência.

Mas o que eu sinto eu sei que sinto,
o que vejo é mais preciso
que qualquer teoria cega,
e o que ouço não é menos
que a música da criação
ressoando eternamente
desde o coração secreto de tudo.

Se sou o caminho de terra e suas pedras,
se sou o assobio da flauta ou os pássaros,
o poeta que escreve
ou o silêncio que é útero da poesia,
isso eu não sei exatamente
mas me alegra destituir minhas fronteiras
de sua pretensa exatidão.

~ Bruno Andante | @brunoandante

Se eu quiser Falar com Deus

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que saltar abismos
A despetalar-me feito rosa
A incinerar-me do conhecido

Se eu quiser voar com Deus
Tenho que ser eternamente recém-nascido
Feito o dourado de um Sol
A fecundar o útero da noite

Se eu quiser a sanidade em Deus
Tenho que ser selvagem
como a inocente dança dos elefantes
Mirar a honestidade de uma chuva
A lavar as certezas de qualquer coisa

Se eu quiser brincar com Deus
Tenho que desistir de toda busca
Rir de mim mesmo
Até a ponta do sorriso ser mais alta
que a altura de minhas quedas

Se eu quiser abraçar a Deus
Tenho que romper as barreiras das diferenças
Amar sem o contágio da posse
Queimar em cinzas os olhos da indiferença
Ser o braço da jangada
a polenizar as flores das eternidade

O Tao que pode ser descrito
não é o verdadeiro Tao
É preciso ter coragem
para morrer a cada instante
De novo de novo e de novo
Passa o tempo e fica o agora
É das leis do infinito ser eterna novidade
Bebo em cada gole de vida
Um oceano de mistérios
Canto e sei que nada sei
Sou eterna novidade

~ Zero | @poemasparaoextase

Edição 2, Setembro de 2021
primavera e impermanência

Editorial

Depois de descansar no inverno, a natureza desperta, na canção renovada dos pássaros, nas cores que se exibem, aqui e ali, nas flores que começam a nascer e perfumar o ar com a graça da primavera.

É tamanha a beleza da vida em seus auges de florescimento, que por vezes a invocamos da memória em momentos mais introspectivos, em dias cinzas de céu nublado, sentindo em nós o desejo trágico (porque impossível) de que a vida seja uma eterna primavera.

Todas as estações têm sua graça, sua beleza, sua força e sua mensagem para a alma. Aprender a reconhecer, respeitar e até reverenciar a dança da vida, que tem a morte como uma de suas faces fundamentais, é o caminho para nos alinharmos com o ritmo do Céu e da Terra.

Ainda assim, o ser humano é abençoado com dons que nos permitem viajar no tempo, e brincar com ele, pela magia da memória, da imaginação, da linguagem. Nesse sentido, a poesia é uma arte poderosa. Nos dias em que o clima do coração é escuro demais para suportar, que bom contar com o poder do verbo para, à imagem e semelhança de Deus, comandar os ventos e abrir os céus, para fazer brilhar a primavera no meio do inverno – se assim desejarmos.

pintura por Tereza Sanches | @arterezas

Flores Ser

Hoje
já cansada da secura
De só ser só
Deitei-me na grama
Levantei os braços
Não toquei o céu
Mas inundei-me do azul
E senti a primavera
Como se sentir estações
Fosse algo que faz parte de mim
Como se meu ser
Fosse raiz caule folha e flor
E como se só a voz do vento
Fosse capaz de me lembrar de existir.

~ Mani Scorza

foto do acervo | Flor das Águas

foto por Bruno Andante

Primavera Poética

Fosse eu Deus, seria primavera o ano inteiro, com sol ameno e chuvas passageiras. Todos os dias teriam o cheiro dos primeiros botões daquela nossa roseira. Fosse eu Deus, os bem-te-vis te acordariam cantando todas as manhã e o pôr-do-sol seria rubro, azul, laranja e violeta, iluminado pelo brilho da estrela mais bonita. Pois sou eu Deus agora, e te ofereço essas palavras aquarelas, uma brisa imaginária a refrescar a realidade.

~ Mani Scorza

Para ver a Primavera

Quem quer viver a primavera
precisa se entender com o inverno.
É só soltando as velhas folhas
que as árvores se livram do excesso,
e sem perder a memória ancestral
devolvem à terra o peso do passado:
é só nessa morte em vida
que abrem espaço no tempo
pra serem novas em folha,
ainda que mais velhas, e mais sábias.

Para ver a primavera
é preciso deixar desabrochar o olhar.
Pra isso basta parar de tentar não ver.
Basta sincera reverência pela verdade viva
que canta e encanta a tudo que move,
e que em sua beleza inspira o coração
a se abrir e florescer também,
para prestar saudação ao sol interno
que brilha eterno por trás do céu nublado
que por longas eras e estações da vida
andamos por aí confundindo com espelho.

Para ouvir a sinfonia alegre da primavera
é preciso primeiro cultivar o silêncio.
É preciso sentir o chamado do amor
que não pede nada
a não ser a nossa mais pura atenção,
que não pede nada
a não ser a coragem de entregar tudo
no altar onipresente do eterno presente,
para que a alma enfim se sinta em casa
na luminosa aurora da compreensão
e cante com os pássaros o raiar do dia.

Para ser primavera
é preciso ser menos pessoa e mais poesia.
Deixar brincar a criança que nos habita
e ensina a arte sagrada de se deslumbrar
com as pequenas grandes belezas cotidianas:
a sublime sintonia entre vagalumes e estrelas,
a velocidade perfeita de caramujos e de flores,
ou o mistério maravilhoso do céu
que é azul cristalino e dá abrigo ao arco-íris
mas é chuva e abriga também ao relâmpago,
com o mesmo sereno acolhimento.

Para ser primavera
é preciso deixar o Ser florescer
entre os espinhos que criamos
para nos proteger na floresta escura da ilusão.
É preciso perceber
que até a sombra é feita de luz,
que a tempestade e a calmaria
contracenam juntas no palco do teatro divino,
que cada estação tem sua canção
e que cantam todas o mesmo som:
cantam todas o infinito OM.

~ Bruno Andante

pintura por Tereza Sanches | @arterezas

Edição 1, Agosto de 2021
ancestralidade e liberdade

Editorial

De onde viemos, para onde vamos?

Com esse questionamento lançamos a semente da brincadeira – da Lila, que em Sânscrito significa isso: a grande brincadeira sagrada da existência. Esse é um tema que, como o arco-íris, guarda mistérios de muitas cores.

Como honrar nossa ancestralidade, e ao mesmo tempo manter os sentidos e o coração abertos para a eterna novidade da vida que dança momento a momento? Na encruzilhada do passado e do futuro está o presente, que é um presente – e até quando vamos preterir ou postergar o Agora?

A arte abre espaço no tempo, e nesse espaço de pura presença, no solo fértil da nossa atenção amorosa, a história que herdamos se torna a lenha na fogueira ao redor da qual cantamos novas histórias. E pela arte, ensinamos nossa descendência a dança da ascendência rumo ao que somos em essência, que já está aqui, sempre. Mágico mistério de Ser e vir a ser.

Família

O Universo é um diamante
que não cabe numa pedra.
Não é ciência do horizonte se repetir.
É dessa aquarela o sangue de minhas veias.
Sou a folha que virou pássaro antes da queda,
o vento a desdobrar-se nos pólens do infinito,
estrela multiplicada
na poeira de sua desintegração.
É de minha semente ser todas as árvores.

Tenho família de plantas.
Tenho família de peixes.
Tenho família de arco-íris.
Tenho família de lebres.
tenho família de astros.
Tenho família de exploradores.
Tenho família de indígenas.
Tenho família nos morros.
Tenho família nas UTIS.

Sinto as auroras que a noite não come.
Mas choro toda noite, quando você chora.

Eu que já fui jibóia,
eu que já fui bactéria,
eu que já fui cascata,
eu que já fui rouxinol,
eu que já fui araucária,
eu que já fui galáxia,
eu que já fui cano de fuzil,
eu que já fui um abraço,
eu que sou revolução molecular.

Choro através dos seus olhos.
É tão imenso ser humano…
É destino do sal da lágrima voltar ao mar.
Nunca deixamos de ser oceanos.
Mãe Terra flor de água.

Quantos sóis descreveriam
o que não cabe em toda luz
e agora vejo ressoar
nas entrelinhas do seu olhar?

~ Zero (Cássio de Oliveira)

pintura por Tereza Sanches | @arterezas

pintura por Tereza Sanches | @arterezas

Poema para dias difíceis (autopoiese)

Vejo o mundo esfarelar em pedaços
e dói no âmago a partida dos irmãos,
rogo o tempo que a gente se abrace
e todo medo se desabe com as máscaras.

É bem verdade
que alguns sonhos não envelhecem,
e há liberdade de não precisar ser alguém.
Eu vi o céu descansar no reflexo dos seus olhos,
outra vida nascerei anil para repetir essa façanha.
Quem sabe, Deus, até lá preservarei-me criança
a ouvir os milagres
transcritos nas vozes dos pássaros.

É de arco-íris as sementes do novo mundo,
e o horizonte está sujeito às nossas mãos.
A valentia é a virtude que faz nascer o broto
e a coragem é o desabrochar da flor
ara viver sem defesas;
um coração despido tem a luz de mil galáxias.

Quero palavras dotadas de silêncio
a ponto do silêncio sorrir sem a boca.
Os meus anjos tem cores de árvores,
toda flor contêm o Universo.

Nossa Senhora é o azul de todo rio
e o dourado é o Sol pintando Oxum.
Fui educado pela sombra de gaivotas,
saltar de abismos é requisito para o vôo.
Somos formigas a plantar revoluções.
Minha jangada é estar presente
na próxima respiração,
assim declaro meu amor a você, Vida.

Tenho memórias de ter sido borboleta,
bater de asas que gerava até tufão.
Eu acredito na criança do seu peito,
que toda alma tem um circo a se armar.
Ouvi o canto da baleia
que pulsa em meu coração…
Não clame o amor
para exercer controle e guerra,
cantou para mim um xavante em oração,
é de alegria a luz do Sol de todo dia
e eu quero ver a gente nele se queimar.

~ Zero

Herdeiro do Agora

O dia se aproxima do fim;
me sento à beira da horta
contemplando mais um por do sol.
Um instante de silêncio meditativo
enraiza a alma no corpo
e libera a mente do peso do tempo.
Tudo é simples. E tudo é pleno.

O vento balança as folhas do milharal.
Pássaros conversam
encerrando os assuntos do dia.
Grilos conversam começando os deles,
anunciando a sinfonia rítmica
que vai pontuar a noite e seus sonhos.
A floresta, se escondendo sem pressa,
ainda colore em um verde vivo
os horizontes do vale.

As minhas meias têm pedaços de palha,
o dedão do pé direito escapa por um buraco.
Meu casaco de lã azul celeste
tem desenhos andinos antigos
e um pouco de fuligem
da panela que foi à fogueira.
Meus instrumentos de poeta
encontro em uma bolsa
de fios trançados por alguma avó
em alguma aldeia;
presente de uma amiga
das montanhas bolivianas.

Inspirado pelas carícias dos sentidos
eu toco uma flauta
em poucas suaves notas;
uma flauta dos índios Navajo
que encontrei no altar do templo,
em frente à imagens de Cristo e Babaji,
de Nossa Senhora e Sarasvati.

Uma geografia simbólica, ciência intuitiva,
discursa em tudo ao redor
em linguagem de sinais sutis,
e versa sobre ancestralidades
mescladas, miscigenadas,
heranças de culturas e histórias
quase esquecidas por um mundo veloz,
e voraz, tão cheio de informação
mas tão vazio de atenção,
de inspiração,
de intuição,
de celebração.

Ocidente e oriente se abraçam em meu silêncio,
me sento sozinho entre os índios e a Índia,
herdeiro de Brahma, de Vishnu e de Shiva,
de Wakan Tanka, de Pacha Mama, de Tupã,
discípulo de Jesus e Buda,
devoto de tudo e de todos,
do vento, do sol, da chuva, da terra e seus frutos,
discípulo fiel de mim mesmo.

Nesse momento atemporal
reflito sobre o deus tempo,
e a memória de povos perdidos
colore o meu olhar
com tantas lembranças entrelaçadas
nos fios dessa teia da vida
em sua versão moderna,
na grande aldeia global, virtual,
um tanto surreal,
integrada e fragmentada
em suas misturas de restos e retalhos,
seus mosaicos multicoloridos
de ideias e imagens.

Essa teia natural-artificial da vida,
feita e refeita através das eras,
se regenera aqui e agora, em mim,
e se revela mais forte e bonita,
e na mesma medida mais simples,
mais sincera, e mais singela,
resgatando a sua saúde ancestral.

Toda a história humana vive em mim,
se nutre e se cura
através de mim e meus irmãos e irmãs;
uma humilde e honrada humanidade
renasce em nós
pelos dias de trabalho na terra
e de descanso preciso e profundo,
dias e noites em ritmo natural
pontuado de sóis e luas e estrelas,
na dança que acompanha ciclos de calor e frio,
nas pajelanças cotidianas de cozinha e cantoria,
nessas coisas tão humanas
que os outros animais estranham ainda,
mas respeitam, e espreitam por vezes, curiosos,
sobretudo quanto ao fogo
ao redor do qual nos reunimos e rimos
iluminados pela luz vermelha e trêmula,
como faziam os nossos ancestrais.

Contemplo por um momento a casa;
é simples, mas ainda uma absurdez
em meio à naturalidade
de árvores e morros e campos.
Mas somos pacatos,
menos barulhentos que o normal,
os animais nos vigiam cautelosos
mas sem medo:
nos veem colhendo folhas, frutos, raízes,
e nossa comida não cheira a sangue.

Ainda assim sou uma espécie de espantalho,
sentado à beira da horta,
tocando flauta
com melodias que me fazem por instantes
soar talvez como um pássaro melancólico;
um homem pássaro,
um aprendiz de xamã então,
algo estrangeiro à natureza ainda
mas a cada dia já mais bem vindo,
ganhando com paciência
a confiança do povo nativo,
de parentes de pluma e pelo e folha.

Sopro no ar um sonho musical,
com esperança de que um dia
meu silêncio seja tão alto
e meu canto tão belo e florido
que os bem-te-vis e canários virão pousar
tranquilos sobre meus ombros,
como ao fim de tarde pousam, tranquilos,
sobre os ramos das araucárias;
e como elas, serei ponte
entre a terra e o céu.

Um homem primata,
abrindo caminhos com as mãos e pés;
um homem pássaro,
voando nas asas da meditação e da música;
um homem árvore
bem enraizado na terra fértil do Agora,
aprendendo cada dia e noite
o poder mais maravilhoso dos xamãs:
o poder de saber ser simples.

E na sabedoria da simplicidade
o fio do tempo dá um nó,
e descubro, surpreso, admirado,
que meus ancestrais são as crianças,
que a mais avançada tecnologia
é a inocência,
que o futuro está em plantar e colher,
e que o trabalho mais valorizado
será o dos astronautas descalços:
dos filhos e filhas da Terra
que se sabem os netos e netas das estrelas,
descendentes diretos e legítimos herdeiros
do ancestral dos ancestrais,
do sagrado mistério da eternidade,
que está bem aqui e agora
em cada simples respiração nossa.

~ Bruno Andante

pintura por Tereza Sanches | @arterezas

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